Elton John declarou há meses que Born This Way, novo e fantástico single de Lady Gaga, desbancaria I Will Survive como hino gay definitivo. Eu acredito que só o tempo dirá, pois por agora não sei se concordo; hinos gays são naturalmente dramáticos e, sendo "I Will Survive" a epítome do drama-queenismo, tá mais fácil as beeshas jogarem uma peruca vermelha e gritar Only Girl (In The World) [Rihanna], na buatchy.
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| Paparazzi - The Monster Ball |
"Born This Way" é profunda demais para ser dublada com maestria pelas drag-queens, que gravitam mais em direção ao estilo que à substância. E Lady Gaga, apesar de todas as controvérsias e polarizações, já está firmada como um ato artístico que vai além e mais profundo na interpretação, performance e reinvenção de seu próprio trabalho. Basta lembrar, por exemplo, que ao cantar
Paparazzi em sua denominada Ópera Pop,
The Monster Ball [a turnê do
The Fame Monster], Gaga trocou a autodestruição homicida do lindo vídeo de
Jonas Akerlund por heróicos sutiã e calcinha que atiravam fogo contra o "monstro da fama".
Talvez seja necessário mencionar aos little monsters que esse tipo de reinvenção/ressignificação da obra artística não é originalidade gagaísta, e vem sendo explorada em conceitos de shows Pop há mais de três décadas por Madonna. Não obstante, Gaga é a única representante da geração de popstars - firmada na primeira década deste século - que demonstrou profundidade técnica e semântica na produção imagética de sua obra.
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| Mother Monster - face |
Eis que no épico clipe de "Born This Way" Lady Gaga abusa do pastiche de referências para criar uma nova raça - que não é nada nova. Desenvolvendo a mitologia da
Mother Monster, como Gaga agora se chama, ela conta o nascimento contínuo [
"in.finite"] de duas raças, uma boa outra má, que na verdade se complementam simbioticamente. [Ela se questiona ao fim do prólogo:
"How can I protect something so perfect, without evil?"]
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Zeus teria transformado Castor e Pólux
na constelação de Gêmeos |
Não há absolutamente nada de novo nessa mitologia gagaísta. O mito greco-latino de Castor e Pólux conta a história de dois irmãos gêmeos, porém diferente: Castor era filho de Zeus, portanto imortal, enquanto Pólux simplesmente humano; o inevitável acontece, Pólux morre, e indignado com a morte do irmão e amigo, Castor renega sua imortalidade até ter o irmão de volta, como parte idêntica dele. Daí que o fantástico no novo clipe de Lady Gaga está no que ela faz de melhor: transformar todas estas possíveis referências em imagem. O parimento da tal raça é sempre mostrado de forma bipartida, lembrando, em momentos, o subversivo filme de
Alejandro Jodorowsky,
The Holy Mountain [1973], ou - no efeito caleidoscópio -
Tommy [1975], a epopéia rock do
The Who.
Como resultado deste nascimento dividido em dois, temos uma Gaga guerreira [Pólux era excelente lutador], mas delicada [Castor era domesticador de cavalos], que tem na pele as características abrasivas desta raça não julgadora nem preconceituosa. Esses enxertos maquiados na cara dela é o ultimato Drag. Desfigurada, Gaga realmente cria uma nova raça com traços tão bizarros, quanto universais: segundo à mitologia gagaísta, "same DNA, I'm born this way."
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| Cher? |
Não acredito ser coincidência que esta nova maquiagem de Lady Gaga lembre a face puxada e replastificada de
Cher, e ninguém menos que ela para evocar a verdadeira essência Drag-Queen. E talvez seja neste ponto que a fala de Elton John seja mais contundente. A natureza inclusiva [tanto da letra, quanto da música] de "Born This Way" permite Gaga e o diretor Nick Knight a injetarem imagens oníricas, sob um magistral esquema de cores quase preto-e-branco, que em sua magnitude
lynchniana é exatamente como a cultura gay que Gaga defende: não precisa ser lógico, apenas subjetivo e bonito.
Sim, a nojeira absurda de Lady Gaga, ao contrário do que
dissera Camile Paglia é bonita e sensual. No início Gaga reinventa o prisma óptico de
The Dark Side Of The Moon, invertendo-o, remetendo à vagina da deusa criadora da nova raça, enquanto um unicórnio aparece em cena [Castor novamente?]. Unicórnios são símbolos de beleza e virilidade, portanto, segundo Gaga neste vídeo, a beleza está na fusão de duas energias opositoras [masculino/feminino, forte/frágil, bem/mal] e na invariável aceitação das diversas nuances da criação - por mais estranhas que elas sejam.
No epílogo, Gaga aparece andando num beco escuro como a Madonna dos anos 1980, iluminada por luvas brancas, à lá
Michael Jackson; as mãos/patas da Mother Monster, iluminadas de tal forma, remetem à continuidade criativa do nascimento quando ela sai montada no equino mitológico.
Finalmente, tanta abstração artística é difícil de ser traduzida por uma estética ou visão cultural, como a desinência do hino gay apontada por Elton John. É, porém, fácil imaginar belas Drag-Queens simplificando a profundidade literária da música de Gaga, pois em "Born This Way", por mais que beba e se revigore na cultura gay, ela transcende seu nicho subversivo da sexualidade, mirando numa perspectiva muito mais ambiciosa de inclusão.
Parece não fazer sentido algum, mas hey, as intenções são ótimas e o produto é liiiiiiiiiiiiiindo!
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Ficha técnica "Born This Way" [
fonte]:
Direção: Nick Knight
Cenários: Marla Weinhoff
Slime Art [a parte da orgia na meleca]: Bart Hess
Modelos: Lady Gaga, Raquel Zimmerman, Rico
Perucas: Frederic Aspiris
Unhas: Aya Fukuda [para Hair Room Service]
Time Fashion: Brandon Maxwell, Anna Trevelyan, Sophie Ruthenstiener, Tom Eerebout, Hayley Pisutaro, Julien Alleyne, Rosaan Wyzard
Assistente de maquiagem: Tara Savelo